HETEROGENEIDADE CONSTITUTIVA
A heterogeneidade constitutiva
ao contrário da heterogeneidade mostrada, não é representável, localizável
(FIORIN: 2007). Ela não pode ser materialmente formulada na estrutura de um
discurso direto, indireto, indireto livre, de uma ironia.
Como modelo de heterogeneidade
constitutiva de Fiorin destacamos dois trechos do romance A cidade e as serras,
do escritor português Eça de Queirós, que Fiorin analisou na íntegra, para defender
o ponto de vista que, apesar de não aparecer no fio do discurso, a
heterogeneidade constitutiva pode ser apreendida. Ele se apoia na teoria de
Bakhtin sobre o gênero romance. Para o teórico russo (2002), o romance
“caracteriza-se como um fenômeno pluriestilístico, plurilíngue e plurivocal” e,
ainda, “O locutor penetra no horizonte alheio de seu ouvinte, constrói a sua
enunciação no território de outrem, sobre o fundo apreciativo do seu ouvinte”.
Apresenta-se, desse modo, o
romance como o lugar privilegiado para exame da heterogeneidade constitutiva,
visto que, conforme se observa acima ele apresenta uma pluralidade de estilos,
de línguas e de vozes, exibindo o confronto entre diferentes perspectivas
sociais. Característica particular do romance é que ele expõe o interdiscurso,
ao passo que outros gêneros, mesmo constituídos na necessária relação
interdiscursiva, ocultam esse interdiscurso.
Exemplo 1:
“Frescos
ramos roçavam nossos ombros com familiaridade e carinho. Por trás das sebes
carregadas de amoras, as macieiras estendidas ofereciam suas maçãs verdes,
porque as não tinham maduras. Todos os vidros de uma velha casa, com sua cruz
no topo, refulgiram hospitaleiramente quando nós passamos. Muito tempo um melro
nos seguiu, de azinheiro a olmo, assobiando os nossos louvores. Obrigado, irmão
melro! Ramos de macieira, obrigado! Aqui vimos, aqui vimos! E sempre contigo
fiquemos, serra acolhedora, serra de fartura e de paz, serra bendita entre as
serras!”(QUEIRÓS, 2013, p. 138)
Este discurso é centrado nas diferenças
entre cultura e anticultura. Aqui, a cultura de Paris é vista como falsa,
superficial, e a de Portugal como verdadeira.
Neste trecho, homem e natureza encontram-se em comunhão. A descrição da
serra portuguesa é contraponto à descrição realizada pela personagem Jacinto
sobre a natureza parisiense (trecho não citado neste trabalho).
Exemplo 2:
“Mas que nos
importava que aquele astro ali se chamasse Sírio e aquele outro Aldebarã? Que
lhes importava a eles que um de nós fosse Jacinto, o outro Zé? Eles tão
imensos, nós tão pequeninos, somos obras da mesma Vontade. E todos, Uranos ou
Lorenas de Noronha e Sande, constituímos modos diversos dum Ser único, e as
nossas diversidades esparsas somam na mesma compacta unidade. Moléculas do
mesmo Todo, governadas pela mesma Lei, rolando par ao mesmo Fim... Do astro ao
homem, do homem à flor do trevo, da flor do trevo ao mar sonoro, tudo é o mesmo
Corpo, onde circula, como um sangue, o mesmo Deus. E nenhum frêmito de vida,
por menor, passa numa fi bra desse sublime Corpo, que se não repercuta em
todas, até as mais humildes, até as que parecem inertes e juvitais. Quando um
sol que não avisto, nunca avistarei, morre de inanição nas profundidades, esse
esguio galho de limoeiro, embaixo da horta, sente um secreto arrepio de morte;
- e quando eu bato uma patada no soalho de Tormes, além o monstruoso Saturno
estremece, e esse estremecimento percorre o inteiro Universo (...) Portanto,
todos nós, habitantes dos mundos, às janelas dos nossos casarões, além nos
Saturnos ou aqui na nossa Terrícola, constantemente perfazemos um ato
sacrossanto que nos penetra e nos funde – que é sentirmos no pensamento o
núcleo comum de nossas modalidades, e portanto realizamos um momento, dentro da
consciência, a unidade do Universo!”(QUEIRÓS, 2013, p. 138)
Este discurso não coloca
civilização e natureza em lados contrários e entram numa complexa fusão, embora
a natureza prevaleça sobre a civilização.
Portanto, a heterogeneidade constitutiva não é, como vemos, um fenônemo
que se possa fisicamente destacar, apontar, ao contrário da heterogeneidade
mostrada, mas é perfeitamente apreensível.
HETEROGENEIDADE MARCADA
A heterogeneidade enunciativa mostrada, que é a presença localizável do
discurso outro no fio do discurso,
pode ser subdividida entre a marcada e a não marcada. A marcada é aquela que
está explicitamente representada no discurso, pode ser pelo uso de aspas, pelo
discurso direto ou indireto etc., o importante é que esta forma estará
claramente marcada no fio do texto. Por outro lado, a não marcada será aquela
em que percebemos a utilização do outro,
mas não a identificamos de maneira clara. Isso ocorre no discurso indireto
livre, nas alusões, ironias etc.
A heterogeneidade enunciativa constitutiva pode ser definida a partir do
conceito de dialogismo (Bakhtin) que parte do pressuposto de que toda palavra
proferida já foi utilizada anteriormente, portanto, mesmo inconscientemente o
sujeito sempre que enuncia terá a presença do outro em seu discurso.
O distanciamento do autor em relação à citação se explica pelo fato de ele
não querer se responsabilizar pelas enunciações equivocadas que está relatando
através da fala de Lula. A citação, que é vista como “diferentes formas de
relatar a mesma enunciação ou, ainda o distanciamento muito variável que o
discurso, ao citar, introduz com relação ao discurso citado” (MAINGUENEAU, D.
1997, p.85).
Além de se afastar, o autor visa criticar a posição deste enunciador.
Abaixo trecho da reportagem da revista Veja (maio 2005), onde a fala do
presidente Luis Inácio Lula da Silva é retomada a todo o momento, e o
comentário do autor é feito logo após.
Exemplo 1:
“Na
quarta-feira (o
presidente) elogiou o ex-presidente da Câmara Severino Cavalcanti e
criou uma edulcorada versão para sua queda, em 2005: “Elegeram o Severino.
Não levou muito tempo e perceberam que ele não era oposição, e trataram de
derrubar o Severino com a mesma facilidade que o elegeram”.Como é público e
notório, Severino não foi ‘derrubado’ pelas oposições, como sugeriu o
presidente, mas antes derrubou-se sozinho, no momento em que passou a cobrar
propina de um empresário em troca de manutenção da concessão de um restaurante
que funcionava na Câmara”.
As enunciações aspadas são “[...] sintagmas
atribuídos a um outro espaço enunciativo e cuja responsabilidade o locutor não
quer assumir” (MAINGUENEAU, D. 1997, p.90).
Pela classificação de Authier-Révuz essa é uma
forma de heterogeneidade enunciativa marcada e mostrada.
Além do uso das aspas, o autor salientando o uso feito pelo presidente
de algumas palavras, posiciona-se em relação à citação; Lula utilizando-se da
palavra ‘derrubado’, por exemplo, pressupõe a presença (e a possível culpa) de
outro, pela queda de Severino. Por outro lado, o autor quando traz a frase:
“[...] Severino não foi ‘derrubado’ pelas oposições, como sugeriu o presidente,
mas antes derrubou-se sozinho[...]”, ele coloca-se em relação ao dito de
Lula. Somente com o uso destes termos: ‘derrubou’ e ‘derrubou-se sozinho’ (que
pode ser entendido como caiu), o autor defende sua posição de que Severino foi
punido pelos crimes que ele próprio cometeu e não que ele foi ‘derrubado’ como
diz Lula.
Exemplo 2:
Imaginemos que um locutor de uma rádio qualquer, após dar uma notícia
sobre a decisão do Governo de aumentar os impostos para arrecadar mais
verbas, cita a enunciação de um membro
da oposição em tom de ironia:
“Esse governo é mesmo brilhante!”
Vozes
presentes na enunciação sem que se lhe possa atribuir palavras precisas, a
enunciação permite expressar pontos de vista (PDV). Um locutor pode colocar em
cena em seu próprio enunciado posições diferentes da sua. Um enunciado irônico
faz ouvir uma outra voz que a do
locutor, a voz do enunciador que
exprime um ponto de vista insustentável. O locutor assume as palavras, mas não o ponto de vista
que elas supõem. O locutor afirma que o governo é brilhante (dito), mas o
enunciador (não-dito) não acredita
realmente no que é dito.
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