segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Análise do Discurso - Heterogeneidade Constitutiva e Marcada

HETEROGENEIDADE CONSTITUTIVA
A heterogeneidade constitutiva ao contrário da heterogeneidade mostrada, não é representável, localizável (FIORIN: 2007). Ela não pode ser materialmente formulada na estrutura de um discurso direto, indireto, indireto livre, de uma ironia.
Como modelo de heterogeneidade constitutiva de Fiorin destacamos dois trechos do romance A cidade e as serras, do escritor português Eça de Queirós, que Fiorin analisou na íntegra, para defender o ponto de vista que, apesar de não aparecer no fio do discurso, a heterogeneidade constitutiva pode ser apreendida. Ele se apoia na teoria de Bakhtin sobre o gênero romance. Para o teórico russo (2002), o romance “caracteriza-se como um fenômeno pluriestilístico, plurilíngue e plurivocal” e, ainda, “O locutor penetra no horizonte alheio de seu ouvinte, constrói a sua enunciação no território de outrem, sobre o fundo apreciativo do seu ouvinte”.
 Apresenta-se, desse modo, o romance como o lugar privilegiado para exame da heterogeneidade constitutiva, visto que, conforme se observa acima ele apresenta uma pluralidade de estilos, de línguas e de vozes, exibindo o confronto entre diferentes perspectivas sociais. Característica particular do romance é que ele expõe o interdiscurso, ao passo que outros gêneros, mesmo constituídos na necessária relação interdiscursiva, ocultam esse interdiscurso.
Exemplo 1:
“Frescos ramos roçavam nossos ombros com familiaridade e carinho. Por trás das sebes carregadas de amoras, as macieiras estendidas ofereciam suas maçãs verdes, porque as não tinham maduras. Todos os vidros de uma velha casa, com sua cruz no topo, refulgiram hospitaleiramente quando nós passamos. Muito tempo um melro nos seguiu, de azinheiro a olmo, assobiando os nossos louvores. Obrigado, irmão melro! Ramos de macieira, obrigado! Aqui vimos, aqui vimos! E sempre contigo fiquemos, serra acolhedora, serra de fartura e de paz, serra bendita entre as serras!”(QUEIRÓS, 2013, p. 138)
Este discurso é centrado nas diferenças entre cultura e anticultura. Aqui, a cultura de Paris é vista como falsa, superficial, e a de Portugal como verdadeira.
Neste trecho, homem e natureza encontram-se em comunhão. A descrição da serra portuguesa é contraponto à descrição realizada pela personagem Jacinto sobre a natureza parisiense (trecho não citado neste trabalho).
Exemplo 2:
“Mas que nos importava que aquele astro ali se chamasse Sírio e aquele outro Aldebarã? Que lhes importava a eles que um de nós fosse Jacinto, o outro Zé? Eles tão imensos, nós tão pequeninos, somos obras da mesma Vontade. E todos, Uranos ou Lorenas de Noronha e Sande, constituímos modos diversos dum Ser único, e as nossas diversidades esparsas somam na mesma compacta unidade. Moléculas do mesmo Todo, governadas pela mesma Lei, rolando par ao mesmo Fim... Do astro ao homem, do homem à flor do trevo, da flor do trevo ao mar sonoro, tudo é o mesmo Corpo, onde circula, como um sangue, o mesmo Deus. E nenhum frêmito de vida, por menor, passa numa fi bra desse sublime Corpo, que se não repercuta em todas, até as mais humildes, até as que parecem inertes e juvitais. Quando um sol que não avisto, nunca avistarei, morre de inanição nas profundidades, esse esguio galho de limoeiro, embaixo da horta, sente um secreto arrepio de morte; - e quando eu bato uma patada no soalho de Tormes, além o monstruoso Saturno estremece, e esse estremecimento percorre o inteiro Universo (...) Portanto, todos nós, habitantes dos mundos, às janelas dos nossos casarões, além nos Saturnos ou aqui na nossa Terrícola, constantemente perfazemos um ato sacrossanto que nos penetra e nos funde – que é sentirmos no pensamento o núcleo comum de nossas modalidades, e portanto realizamos um momento, dentro da consciência, a unidade do Universo!”(QUEIRÓS, 2013, p. 138)
Este discurso não coloca civilização e natureza em lados contrários e entram numa complexa fusão, embora a natureza prevaleça sobre a civilização.
Portanto, a heterogeneidade constitutiva não é, como vemos, um fenônemo que se possa fisicamente destacar, apontar, ao contrário da heterogeneidade mostrada, mas é perfeitamente apreensível.

HETEROGENEIDADE MARCADA
A heterogeneidade enunciativa mostrada, que é a presença localizável do discurso outro no fio do discurso, pode ser subdividida entre a marcada e a não marcada. A marcada é aquela que está explicitamente representada no discurso, pode ser pelo uso de aspas, pelo discurso direto ou indireto etc., o importante é que esta forma estará claramente marcada no fio do texto. Por outro lado, a não marcada será aquela em que percebemos a utilização do outro, mas não a identificamos de maneira clara. Isso ocorre no discurso indireto livre, nas alusões, ironias etc.
A heterogeneidade enunciativa constitutiva pode ser definida a partir do conceito de dialogismo (Bakhtin) que parte do pressuposto de que toda palavra proferida já foi utilizada anteriormente, portanto, mesmo inconscientemente o sujeito sempre que enuncia terá a presença do outro em seu discurso.
O distanciamento do autor em relação à citação se explica pelo fato de ele não querer se responsabilizar pelas enunciações equivocadas que está relatando através da fala de Lula. A citação, que é vista como “diferentes formas de relatar a mesma enunciação ou, ainda o distanciamento muito variável que o discurso, ao citar, introduz com relação ao discurso citado” (MAINGUENEAU, D. 1997, p.85).
Além de se afastar, o autor visa criticar a posição deste enunciador.
Abaixo trecho da reportagem da revista Veja (maio 2005), onde a fala do presidente Luis Inácio Lula da Silva é retomada a todo o momento, e o comentário do autor é feito logo após.

Exemplo 1:

“Na quarta-feira (o presidente) elogiou o ex-presidente da Câmara Severino Cavalcanti e criou uma edulcorada versão para sua queda, em 2005: “Elegeram o Severino. Não levou muito tempo e perceberam que ele não era oposição, e trataram de derrubar o Severino com a mesma facilidade que o elegeram”.Como é público e notório, Severino não foi ‘derrubado’ pelas oposições, como sugeriu o presidente, mas antes derrubou-se sozinho, no momento em que passou a cobrar propina de um empresário em troca de manutenção da concessão de um restaurante que funcionava na Câmara”.
As enunciações aspadas são “[...] sintagmas atribuídos a um outro espaço enunciativo e cuja responsabilidade o locutor não quer assumir” (MAINGUENEAU, D. 1997, p.90).
Pela classificação de Authier-Révuz essa é uma forma de heterogeneidade enunciativa marcada e mostrada.
Além do uso das aspas, o autor salientando o uso feito pelo presidente de algumas palavras, posiciona-se em relação à citação; Lula utilizando-se da palavra ‘derrubado’, por exemplo, pressupõe a presença (e a possível culpa) de outro, pela queda de Severino. Por outro lado, o autor quando traz a frase: “[...] Severino não foi ‘derrubado’ pelas oposições, como sugeriu o presidente, mas antes derrubou-se sozinho[...]”, ele coloca-se em relação ao dito de Lula. Somente com o uso destes termos: ‘derrubou’ e ‘derrubou-se sozinho’ (que pode ser entendido como caiu), o autor defende sua posição de que Severino foi punido pelos crimes que ele próprio cometeu e não que ele foi ‘derrubado’ como diz Lula.
Exemplo 2:
Imaginemos que um locutor de uma rádio qualquer, após dar uma notícia sobre a decisão do Governo de aumentar os impostos para arrecadar mais verbas,  cita a enunciação de um membro da oposição em tom de ironia:
            “Esse governo é mesmo brilhante!”

Vozes presentes na enunciação sem que se lhe possa atribuir palavras precisas, a enunciação permite expressar pontos de vista (PDV). Um locutor pode colocar em cena em seu próprio enunciado posições diferentes da sua. Um enunciado irônico faz ouvir uma outra   voz que a do locutor, a voz do enunciador que   exprime um ponto de vista insustentável. O locutor  assume as palavras, mas não o ponto de vista que elas supõem. O locutor afirma que o governo é brilhante (dito), mas o enunciador (não-dito) não acredita   realmente no que é dito. 

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