Ritmos
como o funk e o tecnobrega despontam como vanguardas musicais mas
enfrentam tensões sociais
Há quem
diga, embriagado pelo complexo de vira-lata que Nelson Rodrigues
apresentou ao mundo, que o conhecimento do Brasil em países
estrangeiros se resume a samba e futebol. Muito embora este
lugar-comum esteja ultrapassado em tempos de globalização e
crescimento econômico, a importância do samba enquanto produto de
exportação e referência musical em todo o planeta é factual.
Entretanto, a escalada do gênero até o patamar internacional
aconteceu de forma diferenciada à sua disseminação em território
nacional, onde o ritmo enfrentou forte discriminação.
Quando
se procura desenhar o panorama da formação cultural do Brasil,
palavras como “diversidade” e “miscigenação” são
frequentemente usadas para retratar a ampla confluência de etnias,
credos e infindáveis culturas que acompanhou a ocupação do
território nacional por indígenas, portugueses, africanos e milhões
de imigrantes de toda parte do mundo. O samba nasceu de uma dessas
misturas, no início do século XX, oriundo de diversas manifestações
culturais africanas que os escravos trouxeram consigo ao Rio de
Janeiro.
Abraçar
o argumento da diversidade sem analisar a fundo nosso cenário
cultural, entretanto, é um equívoco. Gêneros musicais que, como o
samba há mais de cem anos, disseminam-se entre as classes menos
abastadas são envoltos em um preconceito social – embasado em
questões morais – que, por vezes, nada tem a ver com qualidade ou
prestígio. Neste panorama, o funk e o tecnobrega hoje despontam como
vanguardas musicais no exterior enquanto lutam para ser aceitos no
Brasil.
O
baile todo
Dos
morros de onde o samba começou a reverberar, hoje se ouve o funk, o
pagode e os “ritmos de ostentação”. Ao longo de um território
brasileiro muito mais descentralizado econômica e culturalmente,
porém, regiões outrora “isoladas” servem de berço para as
novas vanguardas. Mistura de ritmos locais como o caribó e o calypso
com a temática “brega”, o tecnobrega nasceu no Pará e se
espalhou país afora ao longo da década de 2000. Hoje despontando
no mainstream com
expoentes como Gaby Amarantos e o grupo Gang do Eletro, o ritmo já
emplacou música-tema
de novela,
colecionou honrarias nacionais e internacionais (como uma indicação
de Amarantos ao Grammy Latino) e ganha espaço em programações de
festivais estrangeiros, como o “caçador de talentos”South
by Southwest,
realizado anualmente em Austin, no estado norte-americano do Texas.
Por
situação parecida passou o funk carioca, há cerca de dez anos.
Totalmente distinto do ritmo homônimo surgido nos Estados Unidos em
meados dos anos 60, misturando ritmos como jazz, soul erhythm
and blues e
tendo em James Brown seu principal símbolo, o popular “pancadão”
das favelas foi herdeiro do miami
bass e
adequou a seu repertório elementos de freestyle,
tornando-se conhecido internacionalmente, para efeitos de
diferenciação, como “baile funk”. Mais sobre a história deste
gênero pode ser conferida em outra
reportagem da JPress,
publicada em outubro de 2012.
A
Gang do Eletro levou sua mistura rítmica ao conceituado festival
SXSW, em fevereiro. (Foto: divulgação/Diana Figueroa)
Já o
pagode, ramificação do samba bastante disseminado em festas de
fundos de quintais no Rio de Janeiro (das quais o estilo herdou o
nome), popularizou-se entre as décadas de 80 e 90 através de
“figurões” como Jorge Aragão, Zeca Pagodinho e Beth Carvalho,
ganhando em seguida uma visibilidade sem precedentes através de
grupos como o Raça Negra, o Exaltasamba e o Art Popular. Com letras
carregadas de romantismo e herdando elementos de gêneros
aparentemente distantes como o rock e a MPB, o pagode dos anos 90
merece um capítulo à parte na história musical brasileira, devido
às marcas deixadas não só no mainstream,
mas no imaginário de centenas de artistas que hoje despontam no
cenário.
Embora
dotados de sonoridades díspares, estes ritmos compartilham situações
semelhantes não apenas entre si, mas com inúmeros outros
movimentos, como o forró, a lambada, o sertanejo e até mesmo a
tropicália. Os fatores que agregam ou segregam os estilos musicais
de público e crítica se adaptam ao longo dos tempos, mas em
essência são semelhantes. Fazem parte de um jogo
entremainstream e underground,
estética e essência e, ainda, entre elite e classes menos
abastadas.
Muita
treta
Ao final
da década de 60, durante o regime militar, eclodiu no Brasil o
movimento tropicalista, destoando das correntes musicais da época e
bastante influenciado pela cultura estrangeira, sobretudo o pop
norteamericano. Gilberto Gil, Caetano Veloso e a banda Os Mutantes
foram alguns dos que enfrentaram críticas de uma sociedade habituada
a ritmos nacionais como a MPB e a bossa nova e que foi de encontro à
falta de política e à sonoridade gringa das canções do movimento.
Á época, em 1967, chegou a ser organizada em São Paulo uma
passeata contra a guitarra elétrica, instrumento considerado símbolo
do imperialismo e disseminado entre os “traidores” tropicalistas.
Na realidade, o protesto foi dotado de mais profundidade e
ambiguidade do que sugere, envolvendo diferentes correntes musicais.
O próprio Gilberto Gil esteve presente na passeata, embora com o
intuito de apoiar a amiga e parceira Elis Regina.
Dylan,
durante o polêmico “show da guitarra elétrica”, em 1965 (Foto:
Divulgação)
Dois
anos antes, outro episódio famoso envolvendo a guitarra elétrica
ocorreu no tradicional Newport
Folk Festival,
em Rhode Island, Estados Unidos. No show mais simbólico de sua
carreira, o cantor e compositor Bob Dylan foi vaiado por grande parte
de sua audiência, que criticava o maior expoente do folk por
usar uma guitarra elétrica em sua performance, em contrapartida à
tradicional instrumentação acústica, com violão e gaita. O
episódio mostra que, embora a intolerância inicial com o samba e a
tropicália sejam semelhantes aos problemas atuais no Brasil, o
preconceito não é característica exclusivamente nacional, e sim um
incômodo natural diante do diferente, do estranho, do novo.
A
discriminação sobre os ritmos mais recentes, como o funk e o
tecnobrega, não são muito diferentes, mas carregam também um amplo
fator social. No caso do pancadão carioca, a estrutura lírica ainda
contribui para este distanciamento. “O funk tem sim letras
‘proibidonas’, sexistas e machistas, mas a pessoa sequer ouve o
funk menos agressivo e já iguala tudo no ‘ruim’. Já no caso do
tecnobrega, o lance é o preconceito pelo desconhecido mesmo”,
afirma Marcos Lauro, jornalista e colaborador da revista Rolling
Stone.
Passeata
em São Paulo contra a guitarra elétrica, 1967 (Foto: divulgação)
Para
Marcos, a aceitação que esses ritmos encontram, muitas vezes, mais
facilmente no exterior do que em território nacional não são
indícios de particularidade do preconceito tupiniquim, que “é
igual aos tantos outros preconceitos que o ser humano tem,
independente se brasileiro ou não”. Entre esses seres humanos,
está Rachel Sheherazade, âncora do noticiário “SBT Brasil”
famosa por opiniões rígidas e reacionárias feitas em rede
nacional. Recentemente, Sheherazade direcionou seus ataques a uma
estudante carioca, mestranda em Culturas e Territorialidades, que
elaborou um projeto de dissertação acerca da funkeira Valesca
Popozuda e as relações de suas letras com o pensamento feminista.
Na crítica à estudante, a jornalista não só se revelou pouco
receptiva à sonoridade do funk como equivocadamente questionou a
presença do ritmo na cultura e sua relação com o movimento
feminista.
A
rejeição causada pelas produções simples e letras superficiais –
como no emergente “funk ostentação” – é colocada como
questão de gosto, e, como diz a máxima, este “não se discute”.
Entretanto, a insistência em marginalizar alguns gêneros musicais,
excetuando-os do conceito de cultura e reservando minutos de um
telejornal para colocar-se contra a realização de um trabalho
acadêmico revela a continuidade de um elitismo cultural que aceita
novidades apenas dentro de limitações e, geralmente, sob influência
da mídia.
No Pará,
a relação do tecnobrega com o público é semelhante. Oriundo
sonora e ambientalmente das periferias, o ritmo compartilha uma
produção simplista com o funk e isso mantém uma larga parcela da
população distante. Os olhos e ouvidos reprovadores adaptam-se
conforme a produção evolui e o movimento ganha visibilidade, embora
– como em qualquer outro gênero – sua extensão menos pop, mais
enraizada nas origens, e que atrai e destila um caráter
transformador à população mais carente, segue pouco divulgada e
disseminada.
Festas
de aparelhagem
A
promoção de uma diversidade musical é, há tempos, preocupação
dos diferentes segmentos culturais, ainda que estes sejam delimitados
e “pasteurizados”. No cenário atual, porém, as “novas mídias”
criaram uma ampla diferenciação entre as medidas tomadas no
chamado mainstream e
nos meios mais independentes. Gaby Amarantos, que com sua música-tema
de novela navegou pelas águas de grandes emissoras ao mesmo tempo
que crescia no underground,
serviu como expoente do tecnobrega, mas tornou-se mais um caso sui
generis do
que uma disseminadora efetiva do ritmo paraense. Para Yuri de Castro,
jornalista e repórter do site Fita
Bruta,
hoje Gaby não é “nada para ninguém, nem para o indie e nem para
o ouvinte de FM.[...] Não deu certo, investiram e não tocava em
rádio. Ela tava dançando no Faustão, mas ninguém sabia que música
ela cantava”.
Na
opinião de Yuri, a também paraense Banda Calypso serve como um
exemplo bem sucedido de disseminação dos ritmos e artistas locais,
através da exposição que obteve no rádio. No entanto, ele afirma
que ainda acha “muito pouca a invasão dos ritmos populares e
pertinentes nas FMs e nas casas dos brasileiros”.
Por
outro lado, o meio independente investe em produções diversificadas
como “Jeito Felindie”, tributo ao Raça Negra em forma de
compilação de covers do
grupo gravados por bandas independentes. Idealizado pelo jornalista
Jorge Wagner com grande apoio do Fita Bruta, o projeto reuniu
artistas de regiões e sonoridades diferentes, todos fãs confessos
do pagode de Luiz Carlos e cia., presença constante nas FMs de
outras eras. Sem o mesmo investimento pesado e os grandes riscos do
mainstream, a cena é ideal para projetos de qualidade e que rompam
paradoxos, embora diante de um público consumidor bastante limitado.
Segundo Marcos Lauro, “hoje o meio independente tem toda a força
do mundo para fazer [as misturas] continuarem acontecendo”. No
entanto, o jornalista deixa claro que, em sua opinião, a qualidade
do resultado final independe da diversificação em si, e que “o
artista nem deve ficar pensando muito nesse tipo de questão, senão
ele não trabalha”.

Jeito
Felindie: tributo de artistas indies ao pagode do Raça Negra (Foto:
divulgação/Fita Bruta)
Em meio
a isso, os grandes eventos musicais nacionais também tentam, à sua
própria maneira, dar voz às novas tendências, também diante de
uma notável discrepância entre “grandes” e “pequenos”.
Enquanto o Rock in Rio, por exemplo, cria um lineup heterogêneo
mas de bom senso discutível, que já rendeu de vaias a cantoras de
axé e bandas emo a “chuva
de garrafas”
em Carlinhos Brown, festivais menores buscam medidas menos
arriscadas. O Cultura Inglesa Festival, que vem realizando anualmente
diversas atividades relacionadas à cultura britânica em São Paulo,
de forma gratuita, busca chamar bandas de cenas alternativas do país
para reinterpretar grandes grupos ingleses. Para a edição 2013, por
exemplo, o Bonde do Rolê (um dos grupos nacionais preferidos dos
gringos,incluindo
Paul McCartney)
tocará The Cure.
No
entanto, enquanto as iniciativas supracitadas buscam acabar com a
segregação de gêneros em “cultura” e “subcultura” e
despertar interesse do público mais “elitizado” para sons
abnegados, as novas vanguardas caminham com as próprias pernas.
Ainda sobre o funk e o tecnobrega, Marcos Lauro denota suas
características em comum: “não dependem da aprovação de
qualquer elite, financeira ou intelectual, para acontecer. São
autossustentáveis: vivem perfeitamente dentro do seu gueto e ainda
têm força para conquistar novos públicos, apesar de todo esse
preconceito”.
Tá
na hora da virada
Em sua
9ª edição, a Virada Cultural de São Paulo também apresenta um
quadro favorável à promoção da diversidade musical. O evento, que
leva mais de quatro milhões de paulistanos ao centro da cidade para
assistirem às atrações durante 24 horas, vem se adaptando ao
cenário plural da cultura brasileira. Novidades como a presença de
um palco para o funk e a volta dos Racionais MC’s (afastados desde
2007 após um conflito entre o público e a Polícia Militar) estão
entre as mudanças que despertam a atenção de quem já estava
acostumado com um outro tipo de espetáculo.
Isso se
deve, em grande parte, aos esforços da organização para incluir na
Virada a maior variedade possível de gêneros musicais. Em 2013,
pela primeira vez, a curadoria do evento não foi individualizada e
incluiu um grupo de nove pessoas – entre elas Sérgio Vaz,
da Cooperifa,
e Tião Soares, vice-presidente do Fórum
para as Culturas Populares e Tradicionais –
que montaram, entre as mais de 900 atrações, um cenário que
equipara os diferentes estilos ouvidos pelos brasileiros e apreciados
pelo heterogêneo público que vive em São Paulo.
Para
Yuri de Castro, “[n]esse ano a intenção foi aproximar ainda mais
a população do evento. E acho que isso é uma tentativa de tornar a
programação mais política, mais interessante para a população e
também para quem se apresenta”. Ele também destaca que a
mentalidade do evento não é trazer grandes shows “de ginásio”
ao público, mas ser “um ambiente de deslocamento dos eventos quase
particulares para a rua”. Já ao ser questionado sobre a variedade
do extenso lineup,
Yuri diz: “Vejo com muito orgulho o Racionais e o MC Dedé num
mesmo horário. Da mesma forma como vejo feliz o Negro Leo e o Fabio
Goes e o Sol na Garganta do Futuro no palco para quem é mais
experimental”.
A nova
gestão municipal busca aprimorar o evento, que já é um dos maiores
do mundo devido à quantidade de pessoas que consegue agregar, e
aceita a tarefa de lidar com seus desafios. Embora haja críticas em
relação ao fato de a Virada concentrar seus palcos no centro da
cidade, sem uma grande disposição de eventos nas periferias, Juca
Ferreira, secretário da Cultura do município, ressalta a
importância de se realizar a Virada de forma centralizada, em vez de
espalhar as atividades pelo território. O que caracteriza a Virada,
segundo Juca, é “a quantidade enorme de eventos concentrados em
uma determinada área, permitindo um grau de convivência que a
cidade não desfruta em nenhum outro momento”.
O
histórico deficitário de infraestrutura cultural nas periferias fez
com que a iniciativa de incentivo às atividades partisse dos
próprios moradores, que não se veem representados oficialmente nas
políticas públicas destinadas às artes. Os saraus, importantes
agregadores de pessoas que produzem e apreciam poemas, músicas e
encenações teatrais, têm sua relevância reconhecida e estão
presentes na Virada Cultural, juntamente com os cortejos comandados
por grupos de cultura popular, como o Toré dos Índios Pankararú e
o Bloco Carnavalesco Ilê Ayiê.
Sérgio
Vaz (centro) no Sarau da Cooperifa, que estará presente na Virada
Cultural (Foto: Marlene Bergamo – FolhaPress)
O
secretário Ferreira também cita a expressividade das minorias
sociais que fazem parte da população paulistana e que não têm
destaque quando se fala de cultura. “Essas populações são
confinadas e invisibilizadas na cidade. Não têm um reconhecimento
cultural, apesar de contribuírem pra cidade há muito tempo”,
declara o secretário a respeito dos indígenas, nordestinos e negros
que vivem em São Paulo. Em meio a um conservadorismo e elitismo já
enraizados na mentalidade paulistana, que se acostumou a desprezar o
que não faz parte do seu meio de integração, promover um cenário
de convívio sem distinções é um grande desafio. Comentando sobre
este elitismo e a intenção da Virada em extinguí-lo, Yuri de
Castro afirma: “A elite cultural só se acabará quando a cultura
estiver mais presente nas escolas. Para o que temos, acho que a
curadoria foi bem pontual.”
Apesar
de durar apenas 24 horas, a Virada Cultural cumpre um importante
papel na tarefa de aproximar os diferentes – e não divergentes –
estilos artísticos que fazem de São Paulo uma cidade tão plural,
buscando familiarizá-los e afastar o “estranhamento” que, há
mais de dois séculos, causa discriminação.
Todos
os intertítulos desta reportagem fazem referência a títulos ou
trechos de canções de alguns artistas citados.